Neste mês, completam-se 230 anos que o alferes Joaquim José da Silva Xavier foi enforcado em praça pública no Rio de Janeiro. Mais conhecido pelo apelido Tiradentes, ele pagou com a vida por ter figurado entre os conspiradores da malsucedida Inconfidência Mineira.
Logo após aquele 21 de abril de 1792, o cadáver esquartejado de Tiradentes foi transportado para Vila Rica (atual Ouro Preto). Os pedaços foram deixados ao longo da estrada. Apenas a cabeça em decomposição chegou à capital da capitania de Minas Gerais, onde permaneceu exposta no alto de um poste. O espetáculo lúgubre foi uma advertência da rainha portuguesa D. Maria I àqueles que na Colônia ousassem embarcar em algum movimento separatista.
Com o passar do tempo, Tiradentes se reabilitou como personagem histórico. Antes um subversivo execrável e perigoso, ele hoje é símbolo do Brasil e recordista de homenagens. O inconfidente foi o primeiro brasileiro a receber o título de herói da pátria. Também é, por força de lei, patrono cívico da nação e patrono das polícias civis e militares. Praticamente toda cidade do país tem alguma rua, praça ou escola com o seu nome. O dia 21 de abril é um dos nove feriados nacionais.
Documentos históricos do Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a transformação de Tiradentes no herói máximo do Brasil não foi um movimento espontâneo, resultado da simples ação do tempo. A reabilitação, na realidade, foi um projeto político executado pelos republicanos assim que o golpe de 15 de novembro de 1889 derrubou a Monarquia.
Até então, nos quase 70 anos do Império, Tiradentes não tivera maior significado. Nesse período, os senadores vitalícios fizeram em seus discursos meras cinco referências a ele e à Inconfidência Mineira, todas superficiais e breves. Em contraste, apenas nos três meses do Congresso Nacional Constituinte de 1890-1891, os senadores e deputados fizeram 15 menções.
O deputado Pereira da Costa (RS), por exemplo, afirmou que os parlamentares que elaboravam a primeira Constituição republicana deveriam se inspirar no inconfidente:
— Meus senhores, eu acredito que este Congresso permanecerá na altura da sua grande missão porque creio muito na força incontestável das ideias e dos acontecimentos. A mesma força que imortalizou Tiradentes e o padre Caneca e fez de Benjamin Constant um ídolo, esse mesmo poder invencível há de guiar-nos, quer queiram os déspotas, quer não, na larga estrada do progresso.
A Constituição de 1891 previu que a capital brasileira seria em algum momento transferida do Rio de Janeiro para o Planalto Central. Nas discussões desse artigo, o senador constituinte Virgílio Damásio (BA) apresentou uma emenda para que a futura capital fosse batizada de Cidade Tiradentes. Ele discursou:
— Assim como o nome de Bolívar foi dado à Bolívia por causa dos relevantes serviços prestados à pátria por esse cidadão e assim como a capital da grande república americana tomou o nome de Washington, não é natural que do mesmo modo nós, que tivemos Tiradentes, escolhamos o seu nome para a nossa capital? É o nome do protomártir da República, do apóstolo da liberdade, que entregou a vida pela pátria.
A emenda acabou sendo arquivada. Diante de temas mais urgentes, os constituintes preferiram não gastar energia discutindo o nome da capital — que, no fim das contas, só sairia do papel sete décadas mais tarde, com a inauguração de Brasília.
Num tom ainda mais laudatório, o deputado Costa Machado (MG) explicou aos colegas constituintes porque o seu conterrâneo deveria ser tratado como um mito:
— Existiu em Minas um homem que chamarei providencial e outros chamarão louco. Sim, senhores, há ideias que enlouquecem, há paixões que matam! Esse homem, rodeado de outros cidadãos distintos, viu no horizonte de sua consciência a estrela da esperança para a pátria. Ele quis torná-la independente e livre. E, caminhando atraído por seus raios, não viu que no mundo há abismos. Foi preso, levantou-se o patíbulo e ele oscilou na corda. O seu corpo foi completamente esquartejado, sua família infamada, seus bens confiscados, sua casa demolida e o solo salgado. O nome, porém, de Tiradentes caiu nos braços da glória para ressurgir cem anos depois, resplendente, nas culminantes alturas da história.
Os primeiros quadros a óleo a representar a figura de Tiradentes datam justamente dos momentos iniciais da República, como os pintados por Décio Villares, Pedro Américo e Aurélio de Figueiredo nos anos 1890. Outros viriam nas décadas seguintes e também se tornariam clássicos.
Não se vê em nenhuma dessas pinturas a fisionomia real de Tiradentes, mas sim rostos imaginados ou idealizados, já que os historiadores jamais encontraram nenhum documento da época colonial contendo uma descrição física detalhada do inconfidente.
O historiador José Murilo de Carvalho, autor do livro A Formação das Almas – o imaginário da República no Brasil (editora Companhia das Letras), lembra que o movimento que derrubou a Monarquia em 1889 foi executado e apoiado por um número reduzido de pessoas, entre militares e políticos republicanos, sem a participação do povo. Os novos chefes do país temiam que a população rejeitasse a mudança de regime e se rebelasse para devolver o poder à família de D. Pedro II. Eles, então, saíram à procura de um herói republicano que ajudasse na “construção simbólica da nação” e servisse de “antídoto às ameaças de conflitos”. Carvalho explica:
— Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos. Não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu panteão cívico. Em alguns, os heróis surgiram quase espontaneamente das lutas que precederam a nova ordem das coisas. Em outras, de menor profundidade popular, foi necessário maior esforço na escolha e na promoção da figura do herói. É exatamente nesses últimos casos que o herói é mais importante.
De acordo com o historiador, o herói necessário em 1889 foi inicialmente buscado entre os próprios protagonistas do golpe contra o Império. Nenhum deles, porém, tinha apelo popular. Até o marechal Deodoro da Fonseca, que seria a figura mais óbvia, foi descartado porque era um monarquista convicto e só aderiu ao republicanismo no último minuto e também porque sua figura idosa e barbada remetia a D. Pedro II.
Dada a “pouca densidade histórica” do 15 de novembro de 1889, a personalidade ideal acabou sendo aquela enforcada pela Coroa portuguesa quase cem anos antes. Foram três os motivos principais.
Primeiro, porque Tiradentes foi um republicano. A Inconfidência Mineira teve como objetivo separar a capitania de Minas Gerais do reino de Portugal, por causa do excesso de impostos, e transformá-la numa república independente. Depois, porque Minas Gerais era na Primeira República um estado central em termos geográficos e políticos, não um estado distante e decadente. Por fim, porque havia em Tiradentes um quê de Jesus Cristo. O inconfidente defendeu tão somente a liberdade, foi traído por um amigo, não entregou os companheiros de rebelião, caminhou de forma altiva até a forca e aceitou a morte em nome de um ideal. Não à toa, as pinturas clássicas retratam Tiradentes como se ele fosse fisicamente parecido com a imagem de Cristo.
Com a escolha desse herói, a mensagem que os republicanos quiseram passar à população foi a de que eles tomaram o poder em 1889 com o nobre objetivo de enfim tornar realidade o antigo sonho do mártir mineiro.
— Em maior ou menor dose, todos os heróis e heroínas nacionais são construídos. A figura tem que ser lapidada, limpa de qualquer traço negativo, para ser um modelo inspirador, unificador. Basta ver Joana d’Arc, Napoleão, Lincoln, Bolívar, Mao Tsé-Tung etc. — continua José Murilo de Carvalho. — No caso de Tiradentes, puseram ênfase em certos aspectos de sua vida e personalidade. Pelo lado cívico, ele podia ser visto como um rebelde republicano e patriota. Pelo lado religioso, como um Cristo que se sacrifica pelos outros. Sua construção como herói baseou-se em diferentes leituras. Esquartejado fisicamente, sua memória foi sendo costurada aos poucos, em um país com pouca oferta de heróis.
Fonte: Agência Senado